quinta-feira, 7 de outubro de 2010

cantando a lua esperada

Joaquim, sem mais nem menos, partiu naquele trem

das três da tarde, com exatamente quatro pertences na mão:

nada que tivesse sido meu em vida e vida.

entretanto, por pura brincadeira desses destinos tortos

atribuí a cada um deles algo que de mim nada tinha.

dentro do pano preto, bordado em roxo verde

dobrado cuidadosamente,

estavam seus bens para a vida toda -

pimentas guardadas com o tempo, fios cobres,

um incenso de canela e, raríssimo, pó de cometa

de anos raiz sem origem certa.

levou junto ao peito como se fosse coração coroado.

pensei que fosse o meu.

não era.

o que eu ofereci em uma bandeja, rodeado por folhas

orvalhadas do jardim

ele deixou na madrugada fria, à espera dos filhotes

de lobos que estavam ali, cantando a lua esperada.

eu não sabia - coração não se oferece.

a busca

na sua busca

não encontrei senão a mim.

quando olhei milhares de faces caleidoscópicas

iluminadas pelo olho do sol,

e os verdes azuis daquele infinito,

me vi refletida:

não mais pelo espelho

mas pela água que saía de mim.

algo de blues

entre essas flores que a gente cultivou

nasceu espécie rara de tristeza -

cor de outono e algo de blues.

e perdidos nesse maio de rainha

fingimos que os olhos não vêem

e que o coração não existe.

nossa dança

eu espero o tempo mudar, espero você decidir

vejo o sol surgindo e setembro trazendo a paz

vamos celebrar a gente, enquanto o mundo gira com a nossa dança.

um corpo vazio

nesse nosso canto da noite, Joaquim

que evoca mundos escondidos

coloridos, espirais

me vejo sacerdotisa no espelho quebrado no chão.

e desses cacos, que me refletem várias

te vejo alvo na neblina da manhã.

com as mãos molhadas de alquimia

acordo com a música do dia

onde você desaparece

e eu me torno o que na verdade sou -

um corpo vazio.

a tempestade

sou feita de uma coragem estreita,

dessas que cabem em um dedal de miçangas.

me estico por passadiços seguros, bem sei.

mas é como vivo - nas entrelinhas de qualquer absurdo.

absurdo que for, contando que seja oculto:

passagem aberta para raros.

e foi nessa minha brincadeira de ser brisa

que Joaquim apareceu

e colocou na mesa minha condição de vento.

ele queria a tempestade.

quando a gente saiu à procura da gente
verdejando pensamentos
e clareando os olhares como o sol
foi entre os descabidos sentimentos
que nos encontramos

andando

no cais

e o pássaro azul
que cantava cores várias.
de um suspiro súbito,
nos transformou em verbo outro

e a gente virou mar.
o anjo que passou
tocava trombetas transparentes

seu som, mil odores
jasmim e anis estrelado

a sua cabeleira solar
iluminava o tudo e, assim,
também

meu olhar.
concretude
des
o
lada

infinitas bases des
co
nexas

de você

dentro de m
i
m.

2. Eu gostava de viver na solidão enquanto você, também, gostava. Não me importava que você não fosse meu porque, de certa forma, éramos um do outro; éramos um do outro de uma maneira inventada, sem medida exata, mas era, e o fato de ser me deixava completa. Digo sem medo que viveria bem, seguiria bem – te seguiria – se você voltasse a viver naquele tempo de amor que a gente começou a descobrir, o amor nosso. Você pode dizer agora que não foi nada disso, que eu não tenho discernimento, mas a verdade é que você teve medo. Eu te encantei não foi? Me viu como feiticeira dançando nua nas brumas de uma alvorada distante dos sonhos que você tinha quando mais novo. Ou não? Pode não ter sido e eu, na esperança de buscar alguma verdade na nossa realidade forjada, – na esperança de que ela tenha sido forjada por nós dois! – criei uma história lendária para doer menos, deixar mais bonito, fazer acreditar que o nosso amor, acreditar que o nosso amor foi lindo – doloroso e lindo, como os amores de verdade. Mas, o que eu sei sobre o amor? Já pensei muitas vezes que ele me fosse intrínseco mas, a medida que o tempo desliza sobre meus dedos, chego quase a tocar nessa sensação de que amor nunca tive, senti ou, até mesmo – por que não? – nunca recebi. Você deve estar rindo da minha cara, repassando mentalmente todas aquelas frases de intensidade sobre o amor ser como flor e sangue, pétala e espinho, construído, algo que não se oferece. Acredito que você nunca tenha entendido realmente o que eu queria dizer com “pensei que você estivesse me oferecendo o amor que eu tanto queria”. Oferecer é dar de graça, é dar inteiro, é dar sem esperar, é construir a partir do pequeno gesto. E foram tantos pequenos gestos, promessas delicadas, você me subestimando e eu, como sempre, alto estimando esse seu encanto de mago, de felino, de homem. Tudo bem, eu tento me lembrar da lição dos arcanos. Não era para ser – você tem morada, por mais que afirme que não cria raízes. A gente sempre cria, cria raízes. E é por isso que a gente sempre volta, mesmo que tudo tenha mudado de lugar. A gente volta sim, você voltou – não pra mim. Mentira. Voltou para mim uma vez. Mas a volta que vale é a do para sempre. Sim, eu sei, bem conto de fadas toda essa minha ladainha. Mas é como vejo as coisas. E essa volta do para sempre persegue os milhares de anos que ainda não existem e os que já existiram e os que estão existindo. Entende agora por que eu queria tanto você? Queria ter a sua vida do para sempre, rodar nos espirais e voltar para o mesmo lar. Até me surpreendo com a vontade de submisssão que me envolve o corpo – não é perversão não, é sentimento. Submissão de não enxergar o que pode corroer, só para, assim, ser completo sempre.

reza para joaquim voltar

que o deus me ouça nessa canção desafinada
e que me traga joaquim de volta.

que meu canto chegue a ele também
em um formato de pássaro.
e que ele sinta saudade e sede
e volte para nossa morada.

que o deus o segure em seus braços de vento
e que escute o meu canto
e que seja o pássaro.

entre os sentidos cortados
que o deus seja joaquim:

salvador e prece consagrada.
venho de linhagem já esquecida e
nos dias de alma inquieta
me lanço ao vento e recupero
o que sempre foi meu:

as brumas e a alvorada.
nessa brincadeira tola -
de ver o que não existe

desapareço como mágica antiga,
nas profundezas do mar-sem-fim.
joaquim tinha a voz mais doce
do cosmos.
me encantava cada esquina do corpo
suas canções e o sussurrar de palavras
menos açucaradas, no entanto,
não menos encatadoras,

palavras de serpente que enfeitiça
e devora.

minha vontade era deitar ao seu lado
e ouvir desatinos, uivos, amores.
minha vontade era ele todo -

corpo e metafísica.