O
triângulo das águas é sempre pertinente,
pensou naquele dia de chuva.
Todos
os livros e músicas que haviam lhe deixado insígnias transparentes, embora
doloridas, buscavam retratar as aflições humanas (demasiadamente humanas)
através de conexões possíveis entre o cais, o mar, a travessia.
A água
flui no movimento de um cálice a outro nas mãos da Temperança, o XIV Arcano de
um tarô há muito esquecido no fundo da gaveta, por medo ou por uma inabilidade
congênita com a manipulação dos símbolos. Talvez os dois. Essa é a
mesma água que rega e rege o fluxo da vida, concluiu em um momento de
epifania, entre goles largos da única bebida forte que lhe havia sobrado no
armário.
O
cais, o mar e a travessia. Resolveu se concentrar sobre essa conexão que, no
momento, era a sua maior urgência. Afinal, por mais poéticas que fossem - juntas
ou separadas - essas três palavras atravessavam a sua vida com uma
frequência esmagadora, e a bebiba havia ativado o modo "filosofia
de buteco" em seus monólogos interiores.
O
cais é o ponto fixo das chegadas e das despedidas. E pela sua natureza de margem,
é perpassado, transitado. Ali, ninguém fica. E de lá ele também não sai:
"invento o cais, invento mais que a solidão me dá", mas "pode
ser do vento vir contra o cais" eram as músicas que cantarolavam
desmedidas dentro dela.
Imortalizada
nos escritos de Guimarães Rosa, a travessia é o mais importante de todo
caminho. E não o ponto de chegada ou o ponto de partida. A travessia
também possui natureza de margem, mas de uma forma diferente. Enquanto o cais é
o ponto fixo e seguro, a zona de conforto, mesmo que momentaneamente, a
travessia é o movimento. Está à margem de tudo que não transita, de tudo que é
certo, que é seguro. A travessia, pensou, é o próprio corpo
no mundo - "minha casa não é minha e nem é meu este lugar".
O
mar, que invade os olhos e hipnotiza os sentidos cada vez que quebra nas pontas
de areia, nas pedras, nos pés. Manoel de Barros, assim como ela, criado,
absorvido e incorporado pelo mato, pela terra, pela fruta no pé e pelo pé no
barro, disse: "Por que deixam que um menino que é do mato/Amar o mar com
tanta violência?". Talvez seja mesmo o caso de apontar para a fé, e
re(A)mar.
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